Reencarnar é bom

"Eu mesmo já fiz isso três vezes, na mesma vida"
Ivan Martins
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Está na moda falar em reencarnação. Vira e mexe, vejo alguém se referindo às suas “vidas passadas” como se fosse o tempo do colégio – e sempre me surpreende a naturalidade com que as pessoas relatam experiências impossíveis. Elas realmente acreditam ter sido príncipes assírios ou feiticeiras gaulesas antes de serem o que são? Eu teria dificuldade.
Dito isso, também tenho a sensação de ter reencarnado – mas nesta única vida, e já um monte de vezes.
É fácil perceber, por exemplo, que a minha primeira encarnação terminou por volta dos 35 anos, quando eu, simultaneamente, voltei do exterior, me separei e comecei, pela primeira vez na vida, a morar sozinho.

Aquele sujeito não era, nem remotamente, o mesmo rapaz que se casara ao final da faculdade. Entre um e outro se interpunha uma quantidade imensa de experiências boas e más. Algumas delas profundamente transformadoras, como a paternidade. Os fatos e o tempo fizeram com que eu não mais me reconhecesse no que costumava ser. Tinha reencarnado.

Essa metáfora parece exagerada? Talvez seja, mas ela me ocorre seguidamente.

Olho para trás e percebo períodos existenciais muito bem delimitados. Eles são definidos por eventos emocionais que encerram um ciclo e dão início a outro. A percepção dessas fronteiras, claro, nunca é instantânea. O tempo passa, os acontecimentos se sucedem e você, um dia, nota que não é mais a mesma pessoa – seus sentimentos mudaram, suas ideias mudaram, seu mundo mudou. Você reencarnou.

Seria por acidente que esses momentos notáveis estão ligados a enlaces e rupturas afetivas? Duvido. O fim de um casamento, o início de uma grande e duradoura paixão, o começo de uma vida nova com outra pessoa... Esses são os eventos que marcam, para mim, a transformação interior.

O amor e seus derivados – as grandes paixões e as relações suaves, mas duradouras – deixam, ao terminar, um gosto de morte. Não é por outro motivo que se fala em luto amoroso. É esse ponto final, essa morte simbólica, que dita os limites das reencarnações existenciais. A gente desce fundo na mistura com o outro, sofre como diabo quando a fusão termina e percebe, lá na frente, tempos depois, que, no processo, deixou de ser a pessoa que era – e está pronto para começar de novo

O homem de cinco anos atrás não seria capaz de se apaixonar pela pessoa de hoje – e, aos olhos do homem de hoje, o amor de 10 anos atrás parece incompreensível. Esse é um sinal: quando você já não entende o amor antigo, quando se pergunta, genuinamente, “como eu fui gostar dessa pessoa?”, já reencarnou.

Talvez para outros as marcas sejam diferentes.

Alguns talvez se mirem na experiência do trabalho para medir a própria evolução. Outros terão as etapas escolares como referência. As tribos urbanas ou políticas a que uma pessoa pertenceu, as relações dentro da família, os amigos de cada época - todos esses são marcadores de mudança importantes.
Mas as grandes relações amorosas, pela sua intensidade e singularidade, e pelos sinais indeléveis que deixam em cada um de nós, são, para mim, uma espécie de carbono 14 existencial – é com base nelas que eu volto no tempo e percebo como estava de verdade e às quantas andava a minha cabeça. Quem eu era, enfim.

Talvez a ideia de mudar constantemente incomode algumas pessoas, mas a mim dá um enorme conforto. Às vezes tenho um pesadelo no qual estou no mesmo emprego, na mesma casa e na mesma relação de 20 anos atrás – e acordo apavorado.

Ao mesmo tempo, rejubilo ao perceber quantas coisas novas e quantas caras novas entraram na minha vida nos últimos anos. Cada reencarnação em vida, cada início, permite agregar mais gente, descobrir novos interesses, reciclar convicções.

Pelas minhas contas, estou na terceira reencarnação. Na mesma vida. Nunca tive a chance de ser um guerreiro persa, nem um dos primeiros discípulos de Sidarta Gautama (o Buda) ou, quem sabe, o amante da mais bonita duquesa de York. Mesmo assim, não é o caso de reclamar.

Outro dia, estava almoçando com uma amiga - que me deu, aliás, a ideia para uma coluna sobre rejeição - e me veio um contentamento imenso, simplesmente por estar ali, por perceber que aquela pessoa, que não parava de falar, era capaz de dividir suas inquietações comigo, e que isso me convidava a falar das minhas próprias inquietações.

A presença de novas pessoas, com aquilo que elas trazem de inédito e inesperado à nossa vida, é um marca profunda de renovação. E a gente nem precisa morrer para obter isso. Não deve, aliás. Dizem que a chance de se conhecer uma cara nova depois de morto é mínima. Melhor reencarnar 20 vezes nesta vida. 
  IVAN MARTINS
É editor-executivo de ÉPOCA
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI158311-15230,00.html

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